29 de novembro de 2008

Contos & Prosas


Havia já algum tempo em que acordava e o primeiro pensamento que me invadia era a morte. Naquela manhã em particular, esse pensamento perseguia-me e assolava-me, deixando-me num limbo entre tomar o pequeno-almoço ou ficar na cama até padecer de inanição; entre o barbear-me ou aproveitar o facto para golpear-me no pescoço um pouco mais profundamente e ficar a olhar-me no espelho até os olhos perderem a cor a as pernas perderem as forças. O primeiro pensamento depressa se desvaneceu, pelo tempo desperdiçado e as escaras que o meu corpo podia vir a contrair. O mesmo aconteceu ao segundo, pelo excessivo derramamento de sangue que tal acto implicaria no chão impecavelmente limpo da casa de banho. Eu não gosto de dar trabalho a ninguém, muito menos à minha esposa, e idealizava uma forma muito mais clássica e romântica de morrer. Uma garrafa de absinto combinada com uma caixa de Rohypnol, talvez... ou, quiçá, cortar os pulsos numa banheira enquanto me esvaía bebendo umas taças de Don Perignon ao som dos Requiems de Mozart e depois de Ligeti no meu iPod...
Com o passar do tempo e com o transtorno da bicha na portagem da Vasco da Gama, a ideia recorrente desvaneceu-se graciosamente. No rádio do carro soava Brian Eno e, entre o torpor do trânsito e o cinzento da manhã, deixava-me embalar por sons que não me faziam sentir vivo nem morto, apenas suspenso... E pensei que seria maravilhoso a vida real clivar-se por uns momentos e deixar-me ser livre. Livre para estar só.
O telefonema tinha ocorrido 3 dias antes. Uma voz sóbria, de um indivíduo que aparentava ter uns 50 anos, observava ter recebido o meu currículo (“Curriculum”, como indicou...) e pedia a minha comparência numa entrevista. Era hoje. O meu emprego satisfaz-me e realiza-me tanto como o de 20% dos portugueses (25%, talvez, contando com o empregado de mesa do “Café Real”, que tem a motivação extra de partilhar a sua cama de solteiro com a filha de 22 anos do patrão e o Sr. Alberto da Casa de Alterne “O Cravo Negro”, porteiro que leva as meninas a casa em noites de tempestade e goza de alguns favores das mesmas por essa atenção), logo, e pensando no salário, aceitei sem hesitações.
A manhã no emprego, com as habituais críticas destrutivas do chefe e as vozes monocórdicas dos colegas, fez-me odiá-lo mais um pouco e a morte voltou para me assombrar o pensamento. Cheguei a pensar no foco de discórdia e confusão que provocaria na equipa o facto de me enforcar na casa de banho com o fio do rato do meu computador (por falar nisso, este rato está tão perro que tem que ser limpo...). Se calhar pediriam aumentos... Ou culpariam a última derrota do Benfica... Mas isso não seria belo e é o belo o que mais me preocupa no fim. A maioria das pessoas gosta de um final feliz. Nos filmes, nas peças de teatro, nas novelas da TVI... Eu preocupo-me com o meu final feliz. Uma morte feliz. E bela. Tão bela que só podia ter sido inflingida por quem era dono da sua antítese, da sua vida.
Aproveitei a hora de almoço para me escapulir. A entrevista era ali perto, na Duque d’Ávila. Estava nervoso. Tinha bebido uns copos de Porca de Murça ao almoço para relaxar, mas agora o medo imperava. O hálito a tinto duriense preocupava-me, assim como as pupilas dilatadas. Como hoje era um dia especial e trajava fato e gravata, encaminhei-me para a Versailles. Levava já na ideia uma bica dupla, uma água Castello, uns cigarros para sorver concentração.
Eram 2 e meia da tarde. Três pessoas espraivam-se pelas mesas do solene recinto. Uma senhora idosa, com ar de quem passava as tardes ali, segurando na mão esquerda um cigarro com boquilha e na direita uma revista cor-de-rosa; um homem que aparentava a minha idade, fitando o vazio com um café à sua frente, gravata roxa, que paranoicamente imaginei ser mais um convocado para a Minha entrevista de emprego; um jovem barbudo, cabeça baixa, semi-oculta por uma garrafa de água lisa, lendo avidamente. Adivinhei-o estudante, ou simpatizante do Bloco de Esquerda. Descartei a última hipótese, pois, passados momentos, levantou-se para sair e vislumbrei um livro de Paul Auster na sua mão direita.
Os espelhos seguiram os meus passos até uma das mesas do canto. O empregado serviu-me uma bica dupla que traguei com prazer enquanto lia avidamente uma e outra vez umas páginas representativas da empresa que me aguardava dali a uma hora. Repetidamente soavam-me nos ouvidos as expectativas da minha mulher (“Vai tudo correr bem”), da minha mãe (“Tu és capaz”), do meu amigo Miguel (“É agora ou nunca”). A morte espreitou por entre os meus pensamentos, mas estava ocupado demais para ela...
Ao princípio não reparei no vulto que se sentou na mesa oposta, de frente para mim. Até pensei que fosse um truque dos espelhos, mas ao olhar para a sombra foi o meu rosto que vi. Descortinei um movimento de braços a libertarem-se de um pesado casaco e olhei furtuitamente. Uma mulher de cabelos negros e lábios excessivamente pintados olhava ao redor, em busca de alguém que a servisse. Retomei a leitura e notei, com satisfação, que o indivíduo da gravata roxa se dirigia para a saída. “Menos um” – pensei, apercebendo-me imediatamente do ridículo da minha constatação.
Momentos depois, alguém surge de pé ao meu lado. Era ela. Era impossível não reparar nos lábios redondos e escarlates.
“Posso usar o seu isqueiro?” – Perguntou.
A abordagem causou-me um certo incómodo, pois estava embrenhado na leitura. E mais estranheza me causou, pois ela segurava um cigarro aceso entre os dedos.
“Para quê?” – Respondi, com uma certa rispidez.
“Para queimar o que você está a ler. Não deve ser agradável, pois fá-lo suar.”
Levei a mão à testa e ela voltou encharcada. Esbocei um sorriso esquálido pela tensão que começava a apoderar-se de mim com a proximidade da entrevista.
“O que estou a ler é muito importante. Muito mesmo.” – Disse eu, num misto de desdém e frieza. “Está a estudar. Vai ter um exame...” – Observou ela.
Pensei para comigo o que teria esta mulher a ver com isso. Um pêndulo soou. Ou seria imaginação minha? Sem saber bem porquê, senti que eram 3 da tarde. Faltava meia-hora para o aguardado momento. E as folhas de papel continuavam nas minhas mãos, não pela ordem que as arrumara primordialmente. E aquela estranha mantinha-se de pé ao meu lado, olhando-me como se fosse o último homem em Lisboa numa tarde outonal de quinta-feira. Estragava-me o estratagema, arruinava-me a concentração. Apetecia-me mandá-la desaparecer, que me deixasse sozinho na minha ansiedade insondável.
“Sente-se...” – Murmurei.
“...se quiser, logicamente.”
Como se fosse uma deixa num diálogo há muito ensaiado, ela assim o fez. Cruzou os braços em cima da mesa e o branco do atoalhado rivalizou com o relevo alvo do seu busto, insinuante no decote que parecia apontar para mim. Debruçou-se mais na minha direcção e olhou para os papéis que segurava, esboçando um meio sorriso inquisitivo.
“Não me diga que é mediador de seguros?”
“Não me diga que é puta?” – Apeteceu-me responder de rompante.
“Estou a tentar vir a ser. Isto é, pelo menos até você chegar.” – Acabei por dizer, forçando a ironia.
“Até eu chegar? Quer dizer que pode já não vir a ser por minha causa?”
Todo o espaço ao meu redor pareceu implodir com laivos de surrealismo. Será que ao fim de tanto tempo à espera desta oportunidade, a minha auto-confiança iria esboroar-se por causa de uma desconhecida que decidiu gozar comigo só porque eu bebia bicas duplas? Ou porque suava em bica? Ou porque poderia ser um seu potencial cliente, quiçá o primeiro do dia? Logo eu, que tinha comprado o meu fato preto num outlet e os sapatos na Zara?
“Caso não tenha reparado, a sua presença causou-me um certo incómodo. Estava a tentar estudar, pois tenho uma entrevista daqui a pouco, e você veio interromper-me.”
“E não gostou? Se não, porquê convidar-me a sentar?”
Aos poucos, a tipa tirava-me do sério. E pior ainda, tirava-me o tempo que restava. Eram agora 3 e um quarto. Daqui a 15 minutos, estaria a ser entrevistado, ou a aguardar ansiosamente num sofá de pele enquanto ia treinando sucessivamente a melhor forma de dizer “Boa tarde, o meu nome é Vasco Pinto.”
“Por mera cordialidade” – respondi.
“Agora que fiz a minha parte, pago a minha despesa, pago também a sua, e vou retirar-me”.
“Tem mesmo que ir? Passe a tarde comigo.” – afirmou ela.
Não consegui evitar rir desta vez. E cheguei à conclusão de que ela não era puta, apenas maluquinha. Debrucei-me sobre ela, olhei-a fundo nos olhos castanhos, densos mas límpidos, e respondi:
“Porquê eu?”
“Quem é que lhe ofereceu essa gravata?” – Perguntou ela.
Depois desta resposta/pergunta, tudo era possível. Parecia ter-se instalado uma folie a deux entre nós e eu não sabia como parar o carrossel. Olhei o relógio. Faltavam 10 minutos para a hora combinada.
“Foi a minha esposa, nos meus anos. Se quiser comprar, vendo barato”. – Respondi eu, levantando-me e tirando umas moedas do bolso para pagar a despesa.
“Acredita nas coincidências, no acaso, em momentos irrepetíveis da nossa existência?”
Estava à espera de tudo hoje, menos de esoterismo nas Avenidas Novas.
“Acredito em tudo o que você quiser, desde que me deixe ir embora. A sua despesa está paga.” – Respondi, pegando na pasta de couro que repousava ao meu lado.
“Hoje de manhã quando acordei senti-me tão só, tão morta... Como nunca me tinha sentido... Vesti a minha roupa mais sofisticada, calcei os meus sapatos mais finos, vesti o meu casaco comprado em Manhattan e saí para a rua. Ninguém reparou em mim. E eu queria que reparassem. Que os homens reparassem. Em como ainda posso ser bonita. Em como o meu cabelo ainda pode dançar ao sol. Em como os meus olhos ainda guardam música. Há muito tempo que não amo, que só tenho a companhia de espelhos côncavos, salas vazias e velas fantasmagóricas. Nada me parece real, nem eu... E então no táxi, a caminho daqui, pintei os meus lábios do vermelho mais vivo que consegui encontrar. E disse para comigo mesma que era hoje que ia encontrar um corpo que se colasse ao meu, uma chama que me devastasse como a um bosque impenetrável. E esse corpo, esse homem, seria o primeiro que encontrasse que tivesse vestido uma peça de roupa vermelha. Quero fazer amor consigo até me sentir viva, e depois nunca mais o quero ver. Salve-me... Já não aguento mais estar morta no mundo dos vivos...”
Voltei a sentar-me. Olhei para baixo e a gravata vermelha que trajava aparentou-se com uma língua que pendia, flamejante. O tempo escoava como areia por entre os meus dedos. A razão não estava a ser, de todo, razoável.
“Devia ter trazido a gravata cinzenta... Se calhar tinha passado mais despercebido...” – pensei, abulicamente.
Ela pegou-me na mão.
“Venha comigo... Vamos para a minha casa...”
Já sei o que isto era. Uma vez, quando era criança, a minha professora primária classificou uma cópia minha com um rotundo “Mau”. E disse-me que nunca seria ninguém na vida. Aqui está a consumação da profecia. A praga da velha senhora professora Odete chegava ao seu culminar. Estava à beira de conseguir o emprego mais estável e promissor da minha vida, e uma mulher que eu ainda nem sabia o nome, de lábios encarnados e decote (ou deveria chamar-lhe Dédalo?) acentuado, pedia-me sexo sofregamente.
Mas não, não era isso! Era, com pompa e circunstância, a anunciação da morte! Tanto tempo que esperei por ela, tanto tempo a procurá-la e ela, matreira mas inorexável, como nos contos e lendas antigos, chegava para me reclamar. Não sob a forma de um ente qualquer, inominável e disforme, de hábito negro e foice na mão descarnada, mas sob a forma da tentação, do inescapável. Era o Diabo que me vinha buscar. Ia para o Inferno, ainda por cima. Eu bem sabia que não devia ter bebido água benta daquela vez em que, quando era criança, já não aguentava a sede durante um jogo de bola estival no adro da Igreja.
Esta mulher tinha vindo para me levar. Era a morte que, disforme e nebulosa, me ocupava o espírito nas últimas horas da noite e nas primeiras da manhã. E eu, que tanto tinha ansiado por ela, que tanto a desejava e romantizava, via-a surgir num corpo feminino. Era óbvio. E como iria ela ceifar-me? Antes de abandonar por completo tudo o que era real ao meu redor e deixar-me levar por aquelas mãos macias que me arrastavam da escuridão do café para a tarde chuvosa, só consegui perguntar:
“Minha senhora, tem preservativos?”