19 de agosto de 2009

The Colour of Spirit

Desde sempre, os Talk Talk pareceram uma banda à margem, inadaptada, deslocada. Uma pedra na engrenagem, mas que ao mesmo tempo a faz mover para tomar outro rumo. Provavelmente por não saber onde os encaixar quando surgiram, a crítica britânica inseriu-os no caldeirão bizarro e, na sua maioria, inconsequente, do movimento neo-romântico de inícios de 80. Efectivamente, no seu primeiro álbum, The Party's Over, de 1982, a banda apresenta-se, a espaços, como um pastiche dos Duran Duran. Caso flagrante são os singles Talk Talk e Today. No entanto, momentos como Candy ou o próprio tema-título, aproximam-nos mais dos Ultravox ou da infância dos Japan que de poster bands como os ouriçados Kajagoogoo. Coisa saudável nos Talk Talk foi que nunca se identificaram como banda pretendente a arrebatar corações de adolescentes ou candidata a aparecer na capa da estridente revista Bravo. Provavelmente pela noção que os três rapazes não eram nenhumas estampas (Mark Hollis tem uma voz que ridiculariza Simon Le Bon, mas este último é mais fotogénico...), a música levou sempre a melhor sobre a imagem.
Em 1984, surge a primeira prova que os Talk Talk eram mais que outra banda de sintetizadores, camisas brancas, finas gravatas pretas e penteados exuberantes. As influências continuam, presentes mas difusas, sendo a mais palpável neste período os Roxy Music da era disco glam de Manifesto. De qualquer forma, a banda começa a ganhar identidade própria vincada em canções excepcionais como Such a Shame ou It's My Life, tema que dá igualmente título ao seu segundo álbum. Mark Hollis aperfeiçoa já o seu estilo vocal único, simultaneamente contido e dramático, capaz de arrepiar num momento e apaziguar no seguinte. A música abre espaço a maiores subtilezas, torna-se mais arrojada e complexa, deixando-se arrastar para uma beleza melancólica, especialmente em peças como Tomorrow Started ou a magnífica Does Caroline Know?.
Em 1986, com The Colour of Spring, os Talk Talk alcançam o panteão reservado aos estetas da pop. Àqueles que fazem da música mais que consumo de massas e tinta para pintar as paredes das estações de rádio. Ao seu terceiro disco, o trio londrino torna-se influência para muitas das bandas que surgiram depois, fazendo o seu legado prevalecer até à actualidade. Disco assombrado por uma etérea e hipnótica magia, cada canção parece fazer jus à capa, onde borboletas multicoloridas se alinham num todo que é diferente da soma das partes. The Colour of Spring é atravessado por uma atmosfera de tímido mas sintomático experimentalismo, ritmos intrincados e sumptuosas melodias, em que as guitarras assumem um papel de charneira. Dissertações sobre a vida e a morte, evocações de juventude e inocência, de amor e de perda constituem a espinha dorsal lírica do álbum. Todos os oito temas que o compõem são fora de série, com destaque óbvio para o pulsante Living In Another World e para o ritmo sincopado conjugado à secura da guitarra de Life's What You Make It. Os ambientes de rara beleza, oníricos e envolventes, de April 5th e Time It´s Time são igualmente pontos de paragem obrigatória. Contudo, é o intrigante e despojado Chameleon Day que perdurará como peça fracturante na história deste disco. Após este tema, os Talk Talk nunca mais seriam os mesmos. A editora não os reconheceria neste tipo de sonoridade. O público mais prosaico também não. E eles editam Spirit of Eden.
Spirit of Eden é o disco onde os fantasmas de Mark Hollis se sobrepõem às imposições da realidade. É um disco anti-pop, pontuado por tonalidades jazzísticas esqueléticas e por nuvens esporádicas de um blues descarnado. É um disco de música esparsa, mas onde tocam mais de uma dezena de músicos e onde latejam uma urgência e uma intensidade viscerais, mascarados pela ambiência geral de aparente tranquilidade. Na medida em que utiliza instrumentos ligados ao rock para fazer música que soa a tudo menos a isso, podemos afirmar com legitimidade que Spirit of Eden é o primeiro álbum de pós-rock de sempre. Antecede em cinco anos a estética dos Labradford, dos Bark Psychosis, ou até dos Tortoise. Datado de 1988, influencia de sobremaneira bandas como os Radiohead ou os Sigur Rós.
O álbum funciona como um contínuo, não podendo apontar grandes variações entre os temas, dado que todos partiram de uma base experimental que depois foi depurada até ao resultado final. Ecos do John Coltrane mais místico despontam pontualmente, assim como pináculos da música de câmara ou para cordas de Debussy ou Charles Ives. A tónica é toda ela avant-garde, o que torna o álbum uma experiência única mas exigente, que necessita de sucessivas audições para ser apreendida em pleno. De preferência na obscuridade, dado que grande parte do álbum foi produzido com a banda imersa na escuridão. E, ainda hoje, temas como o lindíssimo e comovente I Believe In You, o inóspito The Rainbow, o intra-uterino Wealth ou a explosão inesperada de Desire provocam arrepios na espinha e entranham-se na pele de muitos melómanos de superior bom gosto e mente aberta ao experimentalismo. Obviamente, e devido ao facto de ser uma obra-prima visionária, Spirit of Eden não vendeu nada e os Talk Talk transformaram-se numa banda alternativa...
Uma das vantagens de ser uma banda pária, ou vanguardista, ou caída em desgraça, é que pode fazer tudo o que lhe dá na bolha. Laughing Stock, álbum de 1991 que sucedeu a Spirit of Eden, tece uma nova tapeçaria de sons a partir das farripas do seu antecessor. Isto não significa que o disco seja um clone do seu par, na medida em que continua a trilhar novas sonoridades, chegando mesmo a suplantá-lo por diversas ocasiões e colocando os Talk Talk num mundo definitivamente à parte. No entanto, mantêm-se as estruturas esqueléticas, as texturas minimais e o improviso do jazz, sendo que o álbum foi lançado pela famosa editora Verve. Myrrhman abre o álbum na costumeira toada sombria, e é guiado pela penumbra por um violino de partir o coração mais empedrenido. Ascension Day podia ser um faixa perdida dos tempos áureos dos Soft Machine, toda ela atravessada por um ritmo jazzístico circular a que juntam estertores de guitarra e remoínhos de harmónica. After the Flood é uma lenta mas cadente marcha, onde a bateria se assemelha à chuva que cai morosamente e a guitarra corta como vento. A voz de Hollis é, desde há muito, um instrumento a juntar aos demais, e não apenas fonte de palavras cantadas. A aparição espectral e sonâmbula de Taphead confirma novamente a certeza que os Talk Talk foram os inventores do pós-rock. New Grass é longa, contemplativa e outonal, convidando ao recolhimento. Segundo consta, o álbum foi gravado num estúdio iluminado somente por velas e onde incenso ardia incessantemente. Nesse sentido, Laughing Stock assemelha-se a uma experiência religiosa, de um misticismo confesso e de uma beleza tão extrema que não precisa de ser física, mas somente espiritual para se manifestar. Runeii fecha as portas ao álbum, com uma guitarra solitária e dormente e faz igualmente cair o pano em definitivo sobre os Talk Talk...

Appendix

Após a separação da banda, os seus principais membros envolveram-se em projectos a solo mais ou menos relevantes. Mark Hollis, vocalista e principal mentor da pandilha editou um único álbum, homónimo, em 1998, e retirou-se da música desde então. Os sete anos passados entre o seu último registo e a sua única obra em nome próprio parecem ter acentuado ainda mais a veia minimal e intimista de Hollis. O disco é música de esqueleto exógeno e a economia de meios é levada ao limite, sendo que as canções se aguentam na corda bamba e no limiar do silêncio. Isto faz com que cada palavra e cada nota ressoem com uma intensidade redobrada. Extremamente melancólico, mas sem ser desesperado, Mark Hollis é poético, arrojado e diferente de tudo o resto que ouvi até hoje. Canções esparsas como a belíssima The Colour of Spring ou a estilhaçada A Life (1895-1915) assombram como paisagens nunca vistas e intrigam como dédalos. Sente-se ainda a influência do jazz em temas como The Daily Planet, mas é um jazz desmembrado, com as entranhas expostas, o que perdura ao longo de todo o álbum. Toda a gente devia ouvir isto pelo menos uma vez, para ficar a amar ou a odiar este génio. Assim, sem meio termo, pois a música também é extremista.
O baixista Lee Harris e o baterista Paul Webb fundaram o projecto .O.Rang, que editou dois álbuns e um EP na mesma linha dos dois últimos álbuns dos Talk Talk e que merecem uma curiosa audição. Mais recentemente, em 2002, Webb adoptou o pseudónimo Rustin' Man e assinou, em conjunto com Beth Gibbons um dos melhores álbuns desse ano, o fabuloso Out of Season, pleno de ressonâncias outonais e reminiscências pastorais.
O teclista e segundo compositor da banda, Tim Friese-Greene, por vezes conhecido como Heligoland, tem produzido discos intermitentes, sendo que o seu mais recente álbum, 10 Sketches For Piano Trio vale muito a pena ouvir.
Da electrónica pomposa e sintetizada ao pós-rock etéreo e descarnado, a música dos Talk Talk foi um contínuo despojamento de tudo o que é supérfluo até à mais monástica das clausuras. Ao ver os vídeos abaixo, e exceptuando a voz característica de Mark Hollis, consegue vislumbrar-se a evolução da banda em 1984, 1986 e 1988...


Talk Talk - It's My Life (UK Version)
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Talk Talk - Living In Another World
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Talk Talk - I Believe In You
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