17 de agosto de 2009

Silly Season

É Agosto, o calor acossa-nos impiedosamente e o H1N1 penetra-nos sem o mínimo de decoro e romantismo. A recessão não dá tréguas e o Diário Económico de hoje informa que o desemprego só deverá entrar em queda em 2011. O Benfica empata imerecidamente em casa. Que fazer perante esta conjunção de eventos? Que fazer para a esquecer, nem que seja por breves momentos? Escutar os Happy Mondays é uma boa opção.
Não me recordo de outra banda em que o hedonismo reinasse com tanto despotismo e cuja atitude se centrasse tanto em viver todos os dias como se fossem o último. Divertimento puro e duro. Excessivo e irreverente até à medula, fuzilando a moral e espancando os bons costumes. Em poucas mas sábias palavras foram definidos como 24 Hour Party People e o epíteto assenta-lhes que nem uma luva.
Oriundos da Manchester cinzenta mas polvilhada de cor de meados de 80, os Happy Mondays foram uma das bandas mais importantes da Factory, um misto de editora musical, cartel de droga e hospício fundada pelo jornalista Tony Wilson. A sua história é sobejamente conhecida, principalmente pelo estilo de vida pouco ortodoxo dos membros da banda. Pouco ortodoxa é igualmente a sua música, principalmente a contida nos primeiros três álbuns do grupo. Uma mistura venenosa e contagiante de psicadelismo, soul e ritmos funk e house. Tudo isto encimado pela voz desconcertante e intoxicada de Shaun Ryder, um dos mais pitorescos frontman que a música já conheceu, e pelas danças símias e desengonçadas de Mark Berry, universalmente conhecido como Bez. Este último merece uma especial palavra de apreço, dado ser o único membro da banda que não toca nenhum instrumento. Apenas dança, com o seu par de maracas e os seus olhos esbugalhados. E quando não dança, apenas está.
No ano de Sua Majestade de 1987, sai para as ruas o primeiro álbum da banda. Ainda hoje me custa lembrar do seu nome na totalidade, dado que se intitula Squirrel and G-Man Twenty Four Hour Party People Plastic Face Carnt Smile (White Out). Produzido pelo insuspeito mestre vanguardista John Cale, é um disco onde, apesar dos ritmos infecciosos, reinam as guitarras, e onde Shaun Ryder se aprimora já como especialista em letras tão obscuras como nonsense. Temas como 24 Hour Party People e Tart Tart são dançáveis e caóticos em simultâneo, embrionários na forma como aliam a festa a uma sensação de que o amanhã não irá chegar e, caso chegue, será negro. Kuff Dam e Olive Oil aproximam-se mais do som clássico das guitarras das bandas de 80, mas sempre com um groove inerente que obriga o corpo a mexer-se. Esta primeira obra é ainda um pouco contida, sendo que a produção de Cale emagrece alguns dos temas, tornando o ambiente geral numa espécie de celebração cinzenta. De qualquer forma, é um excelente disco na forma como transporta o ambiente festivo para a Manchester opressiva, industrial e thatcheriana, influenciando-a e, em simultâneo, sendo influenciado por ela.
A loucura controlada por John Cale transforma-se na loucura declarada por Martin Hannett no surreal Bummed. O segundo longa-duração dos Happy Mondays, datado de 1988, beneficia e muito da produção do genial Hannett, homem mais dotado para este tipo de aventuras musicais. Li algures há muito tempo que este álbum parece ter sido gravado numa masmorra subaquática. Sinceramente não me ocorre termo mais adequado para descrever este disco. Uma autêntica rave party claustrofóbica, preenchida por reverbs ecoantes, ritmos opulentos e uma atmosfera geral de decadência lasciva e hedonismo feroz. Shaun Ryder é a epítome do poeta ébrio, do liricista tóxico, que dispara ironia, sarcasmo, bílis e joie de vivre em simultâneo. Country Song abre o álbum com estas inolvidáveis estrofes: I'm a simple city boy / With simple country tastes / Smoking wild-grown mari-jo-wana keeps that smile on my face. Mais à frente, em Mad Cyril: Although our music and our drugs stayed the same / Although our interests and our music stayed the same / We went together, druggers from the well / We've smoked together and we slipped down in hell. Ainda em grande estilo, Fat Lady Wrestlers reza o seguinte: I've just got back from a year in the sack /Must have been something i'm eating/ I've just got back from a year away / It's down to something you're drinking. Em suma, um manancial lírico que nunca sabemos ser possuidor de algum significado metafísico ou se é mesmo só para rimar... Por esta altura, Manchester mudava o nome para Madchester e a música de dança psicadélica e subterrânea dos Mondays era a fotografia no seu novo B.I.. Bummed é um excelente cartão de visita para a génese deste movimento, especialmente através de sevícias e malícias, melódicas e repetitivas, como Wrote For Luck ou Lazy Itis. Destaque igual merece a dança lisérgica do single Hallelujah, de 1989, o último sob a batuta de Hannett, e umas das melhores canções da banda.
Se com Bummed os Happy Mondays nos arrastam para o seu submundo e nos aprisionam em gaiolas dançantes, o álbum seguinte consuma a festa interminável no mais colorido e luminoso dos hedonismos. Pills & Thrills and Bellyaches, editado em 1990 é a coroa de glória da banda e o orgásmico apogeu da Madchester. Na cadeira de produção, Paul Oakenfold inflinge à banda uma sonoridade mais límpida e mais dançante que nunca, mas igualmente mais ácida. Isto é música hippie na era do MDMA e flower power nas pistas de dança. Irresistivelmente convidativo e contagiante do princípio ao fim, este álbum é capaz até de pôr um sorriso na cara de Manuela Ferreira Leite. Grooves imensos e obnubilantes transbordam por todo o lado, sem dar tréguas, sem parar a celebração. Como se não houvessem amanhãs nem ressacas. Como se não nos devêssemos ralar, pois vamos morrer na mesma e o melhor é fazê-lo em festa. As letras de Shaun Ryder seguem a senda costumeira, com o brilhante e já clássico Kinky Afro a abrir com a confissão: Son, I'm 30 / I only went with your mother 'cause she's dirty. A faceta mais romântica do artista surge em Bob's Yer Uncle onde são atirados a Rowetta, cantora que, por estes dias, é membro honorário da trupe, versos como: What do you want to hear when we're making love / Can I take you from behind and feel you in my heart ou, segundos adiante, Four fall in a bed, three giving head, one getting wet. O efeito das palavras de Ryder é, como sempre, quase tão narcótico como a música, que tem o poder de nos anular o pensamento e nos deixar nos braços de um saboroso esquecimento. De todos os magníficos temas que compõem o álbum, há que nomear igualmente o intemporal Step On, a viagem alucinada de Dennis and Lois, o hino ao ecstasy de God's Cop (a frase God rains it E's all on me diz tudo...) e a homenagem às roupas largas características da cena baggy em Loose Fit. Na hilariante e solarenga Holiday ficamos igualmente a conhecer o ideal de férias de Shaun Ryder: I'm here to harass you / I want your pills and your grass you / You don't look first class you / Let me look up your ass you / I smell dope, I smell dope, I smell dope, Fine smelling dope...
Com a vida desregrada e de excessos a começar a exigir os seus dividendos, os Happy Mondays foram eleitos por Tony Wilson salvadores da arruinada Factory e enviados para gravar um álbum que a salvasse da bancarrota. Enviado para Barbados para a sua concepção, o grupo preferiu dedicar-se aos prazeres do recém-descoberto crack, negligenciando a música e afogando-se na produção sensaborona do casal ex-Talking Heads Tina Weymouth & Chris Frantz. Yes, Please! foi editado em 1992, mas, se não o tivesse sido, ninguém daria pela sua falta. A carreira da banda entrou então numa toada de parada-resposta, mas que em nada se assemelha ao futebol britânico. Após uma mão-cheia de compilações, reuniões esporádicas, um projecto com alguma piada de Shaun Ryder e Bez denominado Black Grape e um mediano álbum a solo do cantor chamado Amateur Night At The Big Top, os Happy Mondays regressaram com novo álbum de originais em 2007. Unkle Dysfunktional possui bons momentos, como em Jellybean ou Cuntry Disco, mas nada que se compare com o brilhantismo do passado. Nesse sentido, o melhor último álbum dos Mondays continua a ser o primeiro álbum dos Black Grape, o espalhafatoso, caleidoscópico e revigorante It's Great When You're Straight...Yeah! de 1995.
Agora, e à medida que os Verões se sucedem, resta a nostalgia daqueles tempos gloriosos entre 1988 e 1991, em que o hedonismo imperava sem complexos de culpa, em que a Hacienda era onde um homem quisesse e onde duetos improváveis como este entre Shaun Ryder e Karl Denver estavam na ordem do dia...