14 de setembro de 2009

Contos & Prosas II


Acendeu o 27º ou o 28º Marlboro da noite. Olhou a massa humana em volta e o copo meio-vazio (ou meio-cheio?) que segurava na mão. Rodando-o lentamente, pensou que o que lhe apetecia mesmo era um moscatel roxo e não aquela mistura de vodka barata e refrigerante de limão que lhe escorregava garganta abaixo, maquinalmente. Mas não, reconsiderou, não iria fazer misturas. À sua frente, a turba saltitante formava uma ondulação trôpega na pista de dança. A música era frenética, robótica, massuda. Obnubilante mas obnóxia, de tão forçada. Ele desejou que fosse novamente 1981. Ou, melhor ainda, 2003. Do primeiro só tinha uma vaga ideia, do segundo detinha a convicção que tinha sido o melhor ano da sua vida. Em ambos, a música era a mesma, revista e actualizada. Em ambos foi livre.
Sentiu-se estranhamente incomodado pela invasão destes pensamentos. Mais ainda por dar consigo a apanhar estilhaços de oportunidades desfeitas e sonhos perdidos numa noite como esta, num lugar como este. Percorreu com o olhar a área em seu redor. Viu corpos suados, corpos despidos, corpos colados, cérebros expandidos. Viu olhares cruzarem-se com o seu e trespassarem-no como se não existisse. Viu rostos deformados por luzes intrusivas. Viu mulheres, jovens e belas, que o ignoravam e outras que o viam também. Não viu rostos conhecidos, nem farrapos de presenças de outrora. Esteve muito tempo longe? Esteve muito tempo ocupado em mudar? Era ele que estava irreconhecível? Ou era este sítio, cujas paredes pareciam agora contrair-se como um útero intumescido para o expelir?
O tempo esvai-se, escoa como o suor que transborda da pista de dança e acaba por se imiscuir nas águas do rio. Ele sobe as escadas que dão acesso ao andar de cima e dirige-se à varanda. Lá está o rio, hibernando no negrume. A música tornou-se perceptível, quase que apostaria que eram os Fischerspooner, ou, num lampejo de irracionalidade, os Suicide. Será que ainda se ouvem por aqui? Bafejada pela fresca brisa da noite, a sua mente navega em águas passadas, que não movem moínhos, mas o transportam para doces memórias. Revive um final de tarde com Maria, em que o ar entrava pelas enormes vidraças abertas e cortinas de organza turquesa prolongavam e derramavam o céu de Verão sobre eles. Lembra-se que ela pediu chá branco e ele, por óbvia insegurança no campo das tisanas, pediu chá preto. Lembra-se do suave bailado dos cabelos dela, de como cobriam e descobriam os seus olhos de amêndoa e as pequenas sardas do seu rosto. Ali ficaram a ver o sol afundar-se, ele a falar com uma eloquência que desconhecia, ela a sorrir perante o mistério das suas palavras. Voltaram para casa de combóio e deram as mãos. Nunca se beijariam.
Noutra noite, naquele exacto local, acendera um cigarro a Marta e dissera-lhe que a amava. Marta murchou como uma flor, murmurando que ele era bom demais para ela. Ele retorquira, "Devolve-me então as minhas asas de anjo para voar para longe de ti...". Com ternura e um sorriso triste, ela acariciou-lhe o rosto e voltou para o dédalo de corpos em fúria. E ele ficou a olhar as águas negras e os seus olhos também se inundaram e também ele ficou nas trevas. Agora sentia-se velho, um espantalho empoleirado numa cruz, sem pernas, logo, sem pegadas que anunciassem o seu rasto. Sentia que não tinha história, que já não sentia na pele a presença física de toda a gente importante que lhe tinha passado pela vida. Não sabia se a escolha tinha sido dele. "As coisas podiam ter sido diferentes..."
De repente, uma palmada nas costas fá-lo voltar-se. "Já pensávamos que tinhas fugido" - disse Miguel. "Onde é que te meteste? Ouve lá, estamos de saída para o Op Art. Ainda vens?"
Em lento ressurgimento do seu torpor, ele balbucia: "As coisas podiam ter sido diferentes..."
Miguel ergue as sobrancelhas e riposta: "O que estás para aí a dizer? Vá, vamos para o Op Art, que ainda devemos apanhar os Booka Shade."
"Estou a dizer que as coisas podiam ter sido diferentes. Podia estar noutro lado. Não necessariamente aqui."
Miguel denota alguma impaciência: "Mas onde querias tu estar? Nós já estamos fartos do Lux e vamos ao Op Art. Vens ou não?"
Ele olha para o relógio, que marca 04:33. Pousa o copo meio-cheio (ou meio-vazio?) no balcão, ajeita a gola da camisa e diz: "Claro. Vamos ao Op Art."