1 de fevereiro de 2010

Invocações

Ontem, ao abrir um velho baú que tresandava a mofo e insecticida, dei de caras com diários que mantive durante a adolescência. Devem ter durado entre 1991 e 1996. Voltei a eles intermitentemente uns anos depois, para em breve os votar definitivamente ao ostracismo. Tinha 25 anos e esta é a última coisa que lá escrevi. Num blog que, não raras vezes, revisita o esquecido e exalta a nostalgia, fui incapaz de deixar de fora esta peça, escrita com as entranhas.

Lisboa, 31 de Março de 2001


Encontro-me novamente em Alfama, na casa que me viu crescer, infelizmente pela última vez. A casa vai passar para outras mãos e eu fiz questão de vir aqui passar a última tarde, fumar um Cohiba e mergulhar no passado.
Pouco mais resta na centenária casa, que a cadeira onde me sento e a mesa onde escrevo. Tal como tudo na vida, esta casa foi envelhecendo, sofrendo a erosão inexorável do tempo, implodindo à medida que o mundo lá fora crescia. Esta é a primeira tarde primaveril do ano, o que contrasta com a tristeza que me invade nestas horas. Preparo-me para abandonar o meu refúgio, que antes fora porto de abrigo, antes disso castelo e, primordialmente, selva por desbravar. Lembro-me de como estas paredes, divisões e recantos, que agora parecem tão gastos e frágeis, foram, na minha meninice, infindáveis mundos paralelos, consoante o Sol, as tempestades e as noites de luar ou sem ele, entrassem pela pequena varanda.
Havia partes da casa onde o Sol nunca entrava, tal como na minha alma, horizontes de luz e trevas. Costumava demorar-me nas trevas, em silêncio, até sentir um arrepio na espinha e correr em direcção à luz. Costumava ficar inundado de luz até me sentir tão forte que partia em direcção às trevas, com resquícios de Sol nos meus olhos.
Metade da minha vida parte e desvanece-se com esta casa, que agora parece tão irreal e estranha como sempre foi, mas destituída do seu poder e magnetismo genuínos. Lembranças, essas, ficam imensas, intensas e eternas. Uma porta oculta entre duas paredes, encimada por um janelo, que não levava a lado nenhum. Noites de Verão à varanda com o meu avô, o meu verdadeiro pai, a descansar a minha cabeça nos seus braços, olhando o interminável empedrado negro que se estendia como um manto até ao fim da rua. Tocar nos ramos da árvore que perdurou anos em frente da janela, acabado de acordar, para sentir a frescura orvalhada das folhas. Descobrir, em sigilo e com olhar febril, o sexo, com toda a ingenuidade e malícia das crianças. Conquistar o mundo com bonecos da Playmobil e fazer dos lençóis brancos da minha cama os desertos do Faroeste. Assustar com requintes de malvadez a minha avó enquanto ela cozinhava e fugir a rir para debaixo da cama mais próxima. Ouvir Heavy-Metal aos berros para atrair as atenções de meninas púberes como eu, que subiam e desciam a rua (escusado será dizer que isto somente as afugentava...). As tardes de chuva, taciturnas e melancólicas. As manhãs de Sol, encandeando-me com a sua beleza plácida. Dias e noites de doença, dor, medo da morte. Sonhos e pesadelos. Partidas e chegadas. Eternas saudades. Amor.
Passaram-se vinte e cinco anos. Eu, aos poucos, por entre quedas no abismo e apalpadelas em escuros túneis, tento conquistar a sensatez. Muita coisa se tem passado ao longo do percurso e esta casa sempre esteve presente em tudo, como a torre de menagem da minha existência. Agora vou perdê-la, perdendo parte de mim, e tentar encontrá-la noutro lado, perto ou longe.
O precioso Cohiba acabou. Deu-me prazer vê-lo arder. Um destes dias irá, certamente, apetecer-me outro. A única diferença é que o prazer dos charutos é alcançável, a sua carência colmatável com alguma facilidade. O contrário se passa com esta casa. Dá-me prazer estar dentro dela, mas vai deixar-me perpetuamente insatisfeito com a sua ausência. Se me apetecer voltar a entrar, a porta vai negar a minha chave, as janelas fechar-se-ão e as paredes recordar-se-ão de mim como um em muitos que, durante os 262 anos da sua existência, tentaram ver nelas gravados os seus rostos para toda a eternidade. A saudade já me corrói. É sempre uma atrocidade ter que dizer adeus ao que amamos verdadeiramente. Nunca mais cá voltarei. Adeus, meu velho palácio!