17 de abril de 2010

Ils Ce-Sont Fous, Ces Gaulois...

Gilbert Artman toca piano e fala francês, mas é, acima de tudo, um baterista nato. Preciso quando é preciso, extravasando quando assim lhe é exigido. Músico de escola jazz por essência, fundou no colectivo gaulês Lard Free uma fusão entre esse estilo, o rock e a electrónica mais sedentos de desbravamento. Gilbert Artman's Lard Free, primeiro capítulo oficial destas catanadas musicais, fez-se em 1973 e manifesta-se como um disco arrojado e visionário para a época. A mistura incandescente e totalmente instrumental, umas vezes abrasiva, outras atmosférica, de sonoridades orgânicas com electrónicas, coloca este disco nos píncaros de uma nova onda revigorante da música francesa, que encontraria similitudes nos Heldon ou nos mais freaky Atoll.
...Lard Free inicia a sua lenta invasão mental com Warinobaril, em que a secção rítmica, cadente e impenetrável, se volta de costas para um saxofone em cantus horribilis tal e qual sereia e uma guitarra que parece gritar por soltura. 12 ou 13 Juillet Que Je Sais d'Elle cresce lentamente, invadindo-nos com uma suave paranóia, muito graças ao sintetizador ansiogénico e imparável que penetra os tímpanos em golpes agudos; sem aviso, uma guitarra perigosamente Frippiana enceta uma segunda parte do tema, esquizofrenicamente distinta da primeira, e em que os ritmos mais espaciais do jazz são novamente reis e senhores. Sente-se já aqui o ténue aroma do fugaz movimento Rock in Opposition, variante extrema do avant-garde progressivo e que influenciou grupos altamente recomendáveis, mas dotados de igual dose de saudável insanidade, como os suíços Dèbile Menthol ou os canadianos Miriodor.
Honfleur Écarlate prossegue a eucaristia a Fripp, que aqui dá pelo nome de François Mativet, mas que emula o mestre na perfeição. Lá atrás, o ritmo propositadamente monótono e descarnado parecem antecipar as litografias musicais em miniatura do excelso Another Green World de Brian Eno. Acide Framboise, provavelmente o momento-chave do álbum, abre com um cinematográfico sintetizador que, por mais que o ouça, não me tira da cabeça o belíssimo filme Der Stadt Der Dinge de Wim Wenders... talvez porque o tema é, no seu todo, cinematográfico; talvez porque a música é tão envolvente, entorpecente e enigmática como a própria película. Um contínuo latejar que invoca noites estranhas ou madrugadas fora do sítio...
Livarot Respiration é docemente noctívaga, impregnada de solidão e fumo e levemente claustrofóbica, devido ao pulsar do baixo de Hervé Eyhani que, apesar das subtis nuances, parece nunca projectar-se além do mesmo círculo. Culturez-vous vous-mêmes termina o álbum em tom lúgubre e minimal, quase um assombro dos Kluster e da sua electrónica ancestral.
...Lard Free é um dos discos mais misteriosos que conheço. Após inúmeras audições, a sensação de estranheza e de incompletude mantém-se. É por isso que gosto tanto de regressar a ele para nunca o descobrir. Algo como ser abraçado pela Vénus de Milo...