19 de junho de 2010

A Marca Amarela

Hypnotic Underworld constitui, até à data, o pináculo artístico dos japoneses Ghost. Monumento da mais recente corrente derivada do psicadelismo, este disco de 2004 é uma simbiose magistral entre o Japão antigo e o Japão moderno. A folk, enevoada e arcana, evocativa de mistérios antigos, cruza-se com a electricidade das guitarras e os estímulos rítmicos. Pelo meio, cirandam mellotrons, harpas, flautas e theremins. O todo é belo, um ponto indefinido no tempo, uma trip pelos milenares matagais nipónicos.
O disco principia na bruma, densa e húmida. 15 minutos de música fumarenta, suspensa e circular, perdida num labirinto escuro e opressivo de folhagens densas e troncos retorcidos. God Took a Picture of His Illness on This Ground, assim se chama a primeira das quatro partes que compõem Hypnotic Underground. Somos como que guiados por uma lúgubre paisagem, que não cativa pela beleza, mas que nos compele a desbravá-la, a ver até onde nos leva. O caos ordena-se em Escaped and Lost Down in Medina, segunda parte do processo de hipnose. Poderosíssimo tema, assenta numa espiral de baixo estonteante, por onde curvas e contracurvas, um saxofone tenta equilibrar-se. A primeira noção de ritmo acaba por surgir, transformando o tema num groove ritualístico que se propaga como fogo. Sucede-lhe Aramaic Barbarous Dawn, curto tema descendente em linha directa do rock progressivo mais vigoroso dos anos 70. A guitarra e a bateria pregam-nos à parede e estreia-se a voz de Masaki Batoh, grave e distante. Leave the World! encerra o subterrâneo hipnótico com um estertor rítmico hardcore de poucos segundos.
A luz derrama-se magistralmente com a cálida e genial versão de Hazy Paradise, original dos holandeses Earth & Fire. Sem dúvida um tema lindíssimo e um convite ao abandono nos seus doces braços, é abençoado pela guitarra feérica do prodigioso Michio Kurihara. Kiseichukan Nite retorna às entranhas do Japão e é temperada levemente a flauta e percussão em surdina. A improbabilidade de uma harpa céltica apimenta de estranheza o tema, mas confere-lhe ainda mais misticismo. A plácida flauta da entrada meditativa e melancólica de Piper não prevê o assalto eléctrico que a invade. Tal como nuvens carregadas que chocam e culminam em relâmpagos, assim é esta canção, um dos temas mais fortes do disco, novamente assaltado pela guitarra de Kurihara.
O passeio por este jardim das delícias oriental prossegue nos 10 minutos de Ganagmanag - jam instrumental, usurpadora, com retoques de jazz sobre a máscara psicadélica. Feed e Holy High são mais duas peças de altíssimo nível, conjugando com mestria sapientes devaneios progressivos a estruturas mais vanguardistas mas sempre tonais e melódicas. A fechar, uma versão altamente personalizada e praticamente irreconhecível de Dominoes, do bardo enlouquecido Syd Barrett, que passa o testemunho a Celebration for the Gray Days. A bruma penetra novamente, o órgão insistente aumenta o dramatismo, uma voz ressoa nas profundezas e a bateria impõe uma autoridade cansada. Lentamente, tudo é engolido, sobrando o silêncio e farrapos da magnífica teia de sons que ficou para trás. Hypnotic Underworld encerra a mensagem de um disco de luto. Luto pela natureza que desaparece, luto pelas tradições ancestrais que se perdem a cada dia que passa, luto pela espiritualidade que o homem moderno abdicou de ter. Por isso e pela excelência criativa, é um dos grandes discos do rock alternativo japonês dos últimos 10 anos.