27 de outubro de 2010

Fragments of a Sabotage

Em 1977, por alturas da edição do EP Animal Justice, John Cale era um homem de extremos. Um homem de excessos. Personagem fulcral na génese do punk rock, revestia as suas prestações ao vivo de agressividade e energia primárias e triturantes. Mergulhado em cocaína e de nervos esfrangalhados, Cale transportava as suas paranóias para o palco, fazendo dele um autêntico cenário de guerra. O episódio mais memorável destas investidas descontroladas será certamente o concerto em que Cale decapitou uma galinha. A banda abandonou-o em palco e ele cristalizou o instante na pragmática canção Chicken Shit. Os defensores dos animais insurgiram-se e a sua resposta é lendária: I didn't hurt it, I killed it.
Igualmente animalesco a espaços, Sabotage/Live, de 1979, é um excelente documento deste período tempestuoso da carreira de John Cale. Reunido em torno de um conjunto de temas originais gravados ao vivo no lendário club nova-iorquino CBGB's, é um disco visceral, crú e cavernoso, debitando metralha a cada instante e com poucos episódios de cessar-fogo. Esta linguagem militarizada aplica-se perfeitamente ao álbum: basta olhar a capa e ficar exposto ao primeiro tema, Mercenaries (Ready for War). Nota-se a paranóia nuclear do auge da guerra fria e a luminosidade mortiça e doentia de bunkers pós-holocausto. A voz de Cale está mais gutural e enrouquecida que nunca, trazendo até pontuais reminiscências do Motörhead Lemmy. Baby You Know e Sabotage enterram-nos essa aspereza tímpanos abaixo, sem dó nem piedade, envolta em rock pesado e urgente.
Captain Hook merece um parágrafo por si só. O melhor tema do álbum e um dos mais penetrantes do compositor galês, avança como um navio fantasma na noite ao longo de 12 minutos. A letra tanto nos aponta para uma metáfora da decadência do imperialismo britânico, como para as malhas da dependência de narcóticos. No final, após uma trémula e tétrica introdução e uma melodia vagueante e sofrida, Cale surge à beira do colapso, anunciando: By hook or by crook, I am the captain of this life. Acme supremo para uma grande, grande canção, da qual é impossível escapar ileso.
Momentos de acalmia surgem apenas em Only Time will Tell, doce melopeia cantada por uma misteriosa senhora de nome Deerfrance, e em Chorale, lindíssimo e agridoce tema a cappella que encerra as festividades. O supracitado Animal Justice EP foi (e bem) acoplado à reedição de Sabotage/Live. Vale sobretudo pela magnífica e arrastadamente sombria Hedda Gabler e pelo claustrofóbico e provocador Rose Garden Funeral of Sores, mais tarde alvo de uma versão mais histriónica que assustadora dos góticos Bauhaus.

Europa, 1992. No rescaldo de uma tournée continental, John Cale edita Fragments of a Rainy Season. Nele, a sua obra é revisitada num registo totalmente acústico, ao piano e à guitarra, resultando num disco plácido e contemplativo, mas sempre belo e emotivo. Clássicos como (I Keep a) Close Watch, Paris 1919 ou Fear (Is a Man's Best Friend) mantém a sua retorcida espinha dorsal, enquanto o despojamento acentua a angústia que as caracteriza. Dying on the Vine ou Cordoba, libertos dos arranjos originais, revelam uma beleza simples e penetrante. Do mesmo modo, a electricidade de Guts e a paranóia de Leaving It Up To You, vêem maximizada a tensão que as assombra com esta nova roupagem. E nunca será demais exaltar a excelência que domina a versão absolutamente arrebatadora de Hallelujah de Leonard Cohen (melhor, só a leitura de Jeff Buckley), bem como a escuridão desolada de Heartbreak Hotel. Surgida pela primeira vez em 1975, no álbum Slow Dazzle, a versão do original de Elvis Presley rapidamente se tornou trademark nos concertos de John Cale. Alvo de vários arranjos ao longo do tempo, a variante oferecida em Fragments of a Rainy Season é a mais surpreendente. Longe da atmosfera paranóica e rarefeita de 75, este Heartbreak Hotel é uma lenta e arrastada queda no poço profundo da solidão. Arrepiante e perturbadora.
John Cale é único, é um dos grandes. Nunca haverá mais ninguém como ele. Estes dois discos retratam fielmente o homem mais insano e o homem mais introspectivo. São obras de música verdadeira, talhadas na pedra por mãos que não param mesmo quando sangram. E, quando a dor é insuportável e o medo o melhor conselheiro, é possível amparar a queda com o pára-quedas da arte.