9 de novembro de 2010

The Blue Nile Waltz

Em quase 30 anos de existência, a obra dos escoceses Blue Nile resume-se a quatro álbuns de estúdio. Os longos interregnos entre os lançamentos deixam intuir, para além da postura descontraída, uma banda mais preocupada com intenções artísticas que comerciais. E é certo que todos eles revelam preocupação com os detalhes, fazendo do trio de Glasgow autênticos mestres das possibilidades sonoras e técnicas do estúdio de gravação. Filhos da primeira geração do compact disc, os Blue Nile usaram e abusaram do digital nos primeiros discos, mas conseguiram sempre fugir à obesa e saturada produção que infectou os anos 80. O seu som é maduro, contemplativo, quase cinemático. É o som das grandes cidades à noite, imensas e solitárias, artificialmente luminosas mas sempre mergulhadas na escuridão. Vai beber ao jazz e à soul, sem deixar de ser pop alternativa para gente crescida e cansada de descargas hormonais eléctricas e descontroladas.

O primeiro longa-duração de Paul Buchanan e seus pares data de 1984 e intitula-se A Walk Across the Rooftops. Bateria é coisa que não existe por estas paragens. Os ritmos sintetizados são arrastados ou hesitantes. Somente nos dois singles extraídos do disco as coisas aceleram ligeiramente. De ambos, Tinseltown in the Rain é nitidamente o mais conseguido, um excelente pedaço de sofisticação pop, ao mesmo tempo emocionalmente exposto. O seu companheiro de 45 rotações, Stay, não é tão memorável, valendo pela sempre bela e sentida voz de Buchanan. O tema-título é um excelente exemplo de exploração do recente som digital da época. Uma escultura de estúdio, tecnicamente perfeita, mas arejada e penetrante em cada novo som que inventa. From Rags to Riches experimenta sons alienantes e que, opondo-se ao conceito de canção, acabam por tornar o tema mais misterioso e cativante. Mas os tesouros deste disco estão guardados nos temas mais lentos, que calha serem os três últimos. Heatwave e Automobile Noise são retratos perfeitos de solidão urbana, cinzentos blocos sonoros, de agridoce melancolia e contida lamentação. O ponto alto do disco é, definitivamente, Easter Parade. À mercê de um piano que soa como pingos de chuva, é uma monumental e triste canção, com Paul Buchanan mergulhado num esparso e poético solilóquio. Um momento de lindíssima solenidade.

Cinco anos volvidos, os Blue Nile regressam à suave carga com Hats. E este segundo álbum é, verdadeiramente, de se lhe tirar o chapéu. Estamos perante um discreto colosso, mas que é um dos melhores discos da década de 80. Mais atmosférico e denso que o seu antecessor, é perspicaz que uma livre descrição no YouTube o defina como o melhor disco para conduzir pela cidade à noite. Apesar de encaixar parcialmente na leitura da música, este rótulo é mais que redutor, pois Hats é, acima de tudo um disco para preencher a noite. Até muito tarde. Até que a solidão não doa. Até que a insónia cante vitória.
Hats ouve-se como um filme em widescreen que capta ruas nocturnas, molhadas de chuva, em que o asfalto reflecte néons azuis e vermelhos e em que automóveis se sucedem em câmara lenta. Uma noite anónima, que nos abre os braços com mil possibilidades de a atravessar, mas que, quando o abraço se fecha, apenas deixa resquícios de vazio. Não vale a pena apontar altos e baixos, pois todas as canções são clássicos distintos e sofisticados, vestidos a rigor para uma noite romântica cujo par é uma incógnita e pode até ser ninguém. Over the Hillside, Seven A.M., Saturday Night, projectam-nos para os solitários e nocturnos quadros urbanos de Edward Hopper, como Nighthawks, New York Movie ou Automat. Os dois singles, Headlights on the Parade e o fabuloso The Downtown Lights são melódicos e acessíveis sem perder o toque artístico e a elegância que percorre o álbum. Na melancolia escura e arrastada de Let's Go Out Tonight e From a Late Night Train somos engolidos pela noite, que nos gela o coração e nos arranha os ossos. Trazem-me à ideia a primeira quadra do poema O Sentimento de um Ocidental de Cesário Verde: Nas nossas ruas ao anoitecer/Há tal soturnidade, há tal melancolia/Que as sombras, a maresia, o Tejo, a melancolia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Se Paul Buchanan lesse estas estrofes, aprovaria certamente. A sua sublime e emotiva prestação vocal é uma das mais sofridas e doridas que já ouvi. Sempre no limite da contenção, sem trair o gentleman ferido mas fleumático que narra estes épicos de solidão, romantismo e abandono. Hats é um disco enorme, que deve ser resgatado do esquecimento a que parece votado nos últimos anos.




Sete anos depois, Peace at Last apresenta-nos uns Blue Nile totalmente transfigurados. Longe das alquimias de estúdio, o álbum é maioritariamente acústico, com fortes influências country, gospel e soul. Happiness e Tomorrow Morning poderiam ser baladas de Bruce Springsteen da fase The River... Depois temos temas como Sentimental Man, Family Life ou God Bless You Kid, em que Paul Buchanan soa torturado como sempre, mas que ruminam as delícias da vida doméstica. É cruel dizê-lo, mas as melhores canções surgem em vivências de crise. Para os Blue Nile isto não é excepção. Estas odes de quem finalmente encontrou a paz são belas e bem arranjadas, mas demasiado mornas perante o fogo e o gelo de Hats.
Mais oito anos foram necessários para a banda dar à luz o seu quarto rebento. High de seu nome, é um disco de brando ardor, pleno de canções nocturnas e frágeis, mas sempre sofisticadas, como só os Blue Nile sabem fazer, apresentando-se como o real e digníssimo sucessor de Hats. O estilo e o bom gosto pululam por toda a obra, com arquitecturas electrónicas e acústicas em perfeito convívio. De Days of our Lives a Stay Close, passando por I Would Never, Because of Toledo ou Soul Boy, High será, talvez, um dos melhores discos de canções de 2004 que ninguém ouviu. Mais fica. Quem descobrir os Blue Nile agora, percebe que não perdeu nada. Toda a música foi preservada no âmbar que ultrapassa o tempo.