2 de maio de 2011

Maldito Scott Walker

Noel Scott Engel precipita-se em queda livre a partir do lado B de 'Till The Band Comes In, o seu quinto álbum oficial de 1970 sob o pseudónimo Scott Walker. Até então, o crooner que estudou canto gregoriano e foi poster boy dos massivos Walker Brothers, deixava por onde passava um rasto de perfume tão charmoso quanto sombrio. Os seus quatro primeiros álbuns a solo são intocáveis. A espaços, e com 40 anos de distância a delimitar a sua concepção, Scott I e II apresentam arranjos desmesurados e orquestrações inusitadas. Mas guardam aquela voz que não é deste mundo e canções comparáveis a abismos profundos e impossíveis de esquecer a quem lá se deixa cair. Scott Walker poderia ser o filho bastardo de Jacques Brel e Juliette Grèco, nascido na América e apadrinhado por Sartre e Beauvoir para espalhar o existencialismo sob a forma de bruxuleantes torch songs. Scott III e IV adensam a matéria de que são feitos os pesadelos e são dois dos mais belos e terríficos discos do século XX. Em 1970, Walker é um artista reverenciado mas que vende pouco. Toma o partido da arte e deixa os departamentos de marketing com os nervos em franja. O rapaz que provocava desmaios quando cantava The Sun Ain't Gonna Shine Anymore é agora um homem reclusivo que prefere ler Camus e Freud e ver filmes de Bergman a aparecer em festas e sentar ao colo groupies extasiadas.
O comportamento esquizóide e o desinvestimento nas actividades artísticas mundanas arrastaram Walker como uma enxurrada a partir de 1970. A vida errante tomou o lugar do estrelato e instalou-se um período (conforme as palavras do próprio no magnífico documentário 30th Century Man) assente em a whole lotta drinkin'...


A travessia no deserto encetada por Scott Walker a solo entre 1970 e o renascimento criativo de Climate of Hunter (1984) deu azo a quatro discos tão repulsivos como fascinantes. Quatro discos que não possuem uma única composição do cantor, mas que detêm uma estranha aura de charme decadente, como se um homem que não soubesse fazer mais nada sem ser cantar se arrastasse ao longo da escuridão em busca de uma luz que tarda em aparecer. A primeira dessas obras intitula-se The Moviegoer e data de 1972. Como o próprio nome indica, é construída a partir de interpretações de temas de filmes e de compositores variados como Nino Rota, Henry Mancini ou Lalo Schifrin. Não deixa de ser particularmente bizarro ouvir Walker cantar Speak Softly Love de Rota (o universalmente conhecido tema de The Godfather)...
This Way Mary (de John Barry e Don Black), The Ballad of Sacco and Vanzetti (de Joan Baez e Ennio Morricone) e Glory Road (de Neil Diamond) resultam bem na entrega crooner do cantor e os restantes temas enquadram-se na perfeição num singles bar mal iluminado e fumarento, povoado apenas por almas solitárias a altas horas da noite, que procuram aconchego na voz de outra alma solitária. Ou no tempo de espera para a última sessão numa sala de cinema vazia...


Da noite vazia e do anonimato cinéfilo aos bares de hotel ou de cruzeiros, nunca a decadência de Scott Walker foi tão acentuada como em Any Day Now (1973). Las Vegas e o lado mais doentio dos seus casinos e casas de espectáculos transborda em catadupa deste disco. Os ambientes continuam nocturnos como sempre, mas desta vez demasiado sacarinos e feitos para agradar a adeptos de música papel de parede que jogam blackjack e casais envelhecidos americanos unidos em Vegas por Elvis pela terceira vez. Há um charme depressivo neste disco, que lembra Burt Bacharach no seu melhor e Paul Anka no seu pior. A voz continua única, como sempre, mas poucas canções o livram da mediania: Ain't no Sunshine, When You Get Right Down to It, If Ships Were Made to Sail... O verdadeiro momento twilight zone é a versão de Maria Bethânia de Caetano Veloso. Scott Walker de camisa às flores e chapéu de palha? Não, Scott Walker a cumprir contrato...



O calvário das obras negligenciadas prolonga-se nos álbuns de 1973 e 1974, Stretch e We Had It All. O ideal é considerar estas obras em regime dois em um, tal como a edição definitiva em CD levada a cabo pela BGO em 1997. Desta feita, Walker atira-se largamente à música country e destila duas dezenas de temas mais ou menos obscuros desta cartilha. Mas não se espere daqui um rastilho do que viria a ser o alternative country ou uma cavalgada em pradarias outlaw country. Incompreensivelmente, e com tanto bom material por onde escolher, o cantor parece ser mais fiel ao espírito meloso e conservador de Nashville. As interpretações são polidas e orquestradas e alguns dos músicos alvos da leitura de Walker são creditados songwriters americanos (Mickey Newbury, Billy Joe Shaver, Randy Newman). Sunshine, Just One Smile, That's How I Got to Memphis, a cadência R & B de Use Me e a típica balada country Old Five Dimers Like Me são agradáveis, mas nunca memoráveis. Faltam nervo, risco e génio ao homem que compôs canções imortais como Plastic Palace People, It's Raining Today ou Duchess.

Em 1975, os Walker Brothers reunir-se-iam e desse regresso brotariam três discos. Scott voltou a ter um fugaz protagonismo. Mas era tarde demais para ser aquilo que nunca quis ser: uma estrela pop. Voltou a solo em 1984, reinventando-se magistralmente e, desde então, presenteou-nos apenas com mais duas aparições. Tremendas e perturbantes, como o génio reclusivo que as molda e que, apesar de já não provocar histeria nas adolescentes, provoca calafrios e penetra fundo nas almas de gente crescida. Os quatro discos acima descritos são apenas obrigatórios para os obsessivos. É um trabalho sujo falar sobre eles, mas alguém tem de o fazer. A restante obra de Scott Walker é obrigatória para quem precisa de música bela e única como de ar para respirar.