11 de julho de 2011

Tripology


Ninguém diria que o australiano Daevid Allen, guitarrista co-fundador dos Soft Machine, escolheria o caminho que seguiu nos Gong. As diferenças entre os conceitos de ambos os colectivos não poderiam ser maiores. Talvez as suas errâncias em Paris durante o Maio de 68 e, posteriormente, no Sul de Espanha, na companhia de beatnicks, hippies e quejandos, o tivessem afastado da seriedade arty da banda britânica. Mas o mais provável é terem sido mesmo as drogas. Os Gong são um dos agrupamentos mais alucinados e alucinantes de que há memória. Resistente à sucção pela espiral do tempo, a banda inglesa - que também é francesa - sofreu várias alterações de liderança e até de nome ao longo das suas décadas de militância artística. Por entre o caos deste organismo sempre vivo, o período em que Daevid Allen comandava as operações é considerado o mais fértil e imaginativo. E as obras que compõem a Radio Gnome Trilogy são as montanhas mais altas dessa surreal cordilheira discográfica.


Flying Teapot, de 1973, é o primeiro tomo da trilogia conceptual. É, igualmente, um dos discos mais lunáticos e surreais de sempre. Como manda a tradição setentista, assenta numa narrativa desenrolada ao longo dos temas. E o enredo de Flying Teapot alcança um patamar de bizarria invejável, complicado de explicar em poucas linhas. Basicamente, um criador de porcos com uma fascinação pelo Antigo Egipto adquire um brinco mágico a um vendedor de bules de chá que lhe permite ouvir ligações de rádio de um planeta distante: Planeta Gong. Entretanto, a personagem principal da história (Zero the Hero) tem uma visão desses extraterrestes em pleno centro de Londres e passa a venerá-los. As criaturas dão pelo nome de Pothead Pixies, são verdes, têm uma hélice na cabeça e fazem-se transportar pelo espaço em bules de chá... Acredito piamente que seja necessário encontrarmo-nos no mesmo estado alterado dos autores para dar sentido a esta novela psicadélica. O mesmo não se passa com a música, felizmente. O surrealismo e a imaginação extremas transbordam para o som (outra coisa não seria de esperar), mas as composições são do mais inventivo, original e contagiante. Blocos instrumentais cuja matéria-prima é um jazz cósmico, estonteante e venenoso colam-se a um rock vertiginoso, ensandecido. Algo como juntar os Weather Report e os Hawkwind num filme de animação espacial criado por Ed Wood. Zero The Hero & The Witch's Spell, Witch's Song/I Am Your Pussy e o tema-título são bafejados por uma genial anarquia e entram nas nossas cabeças para nunca mais serem esquecidas. The Pot Head Pixies é a peça mais directa, mas é difícil obter airplay quando se fala de drogas tão abertamente. O casal Daevid Allen e Gilly Smith encarna personagens e situações magistralmente e todo este bolo inusitadamente coerente faz de Flying Teapot um disco único e uma experiência ilógica mas belíssima.


Ainda em 1973, é lançada a segunda parte da saga: Angel's Egg. O enredo adensa-se e mantém o surrealismo. Desta feita, Zero the Hero é transportado até ao Planeta Gong depois de tomar uma intoxicante poção. Aí trava finalmente laços com os seus habitantes, começando por uma prostituta alieníngena e acabando na consciência planetária chamada Ovo do Anjo. O objectivo é fazer do terráqueo mensageiro da chegada extraterrestre à Terra, o que acontecerá numa grande festa que dará início a uma Nova Era e à união entre civilizações. Business as usual para Daevid Allen e sua confraria...
A música de Angel's Egg roça o sublime. Este é, na verdade, o capítulo mais conseguido da trilogia, feito de temas directos e engenhosos, com uma sensibilidade apelativa notável. Mas dos Gong nunca se espera o óbvio e o disco é apetecível sem ser fácil e lúdico sem ser descartável. É fantástico do princípio ao fim, como um fio condutor carregado de electricidade e de insanidade, que só se esgotam no último segundo. Other Side of the Sky, Prostitute Poem e Oily Way possuem o raro dom musical de alimentar corpo e alma, pela simbiose entre as atmosferas cósmicas e a sedução física. Steve Hillage brilha com uma aura intensa e a sua guitarra resplandece em Sold to the Highest Buddha e I Never Glid Before. O resto é um pouco de jazz, um pouco de nonsense, um pouco de tudo e um pouco de nada. No fim fica a garantia de termos sido expostos a um dos melhores álbuns dos anos 70.


You constitui o último volume da Radio Gnome Trilogy. Data de 1974 e volta aos territórios mais livres, improvisados e desgarrados de Flying Teapot. O herói da narrativa encontra-se de volta à Terra e prepara o encontro entre civilizações. Será um grande concerto em Bali com o sugestivo nome Great Melting Feast of Freeks. Durante o festim, todos os participantes são presenteados com um terceiro olho que permite aceder à revelação de um novo mundo. Zero distrai-se a comer um bolo de frutas e perde o momento. A partir daí, cai numa espiral sucessiva de nascimento e morte até se tornar parte do Ovo do Anjo... Nada mais simples.
Este seria o último álbum dos Gong com o líder Daevid Allen, que ficaria longos anos afastado do colectivo, dedicando-se a uma miríade de projectos, sozinho ou mal acompanhado. Mas a sua banda do coração seriam sempre os Gong e Allen nunca teve melhoras significativas, como se pode constar pela capa de Acid Motherhood, álbum de 2004. A sua presença em You é efémera e algo apagada, o que se nota na ausência de delírios narrativos e na proliferação de temas instrumentais. A guitarra de Steve Hillage, os sopros de Didier Malherbe e a bateria de Pierre Moerlen (estes últimos futuros fundadores de uns Gong renovados e mais próximos do rock progressivo que do psicadelismo) são as estrelas da companhia. Jazz e rock interagem, expandindo os horizontes de ambos os estilos, não raras vezes até ao irreconhecimento. Isle of Everywhere, Master Builder e You Never Blow Yr Trip Forever arrasam e mostram que este terceiro episódio não deve ser considerado o elo mais fraco da trilogia, simplesmente o mais espontâneo e libertário.

Radio Gnome Trilogy fica para a história como uma das obras mais visionárias e bizarras que o rock já conheceu. Uma verdadeira intoxicação musical, a verdadeira pedrada do outro mundo. Este descaramento pode ser chocante para uns e fascinante para outros. A história não ficou por aqui, sendo que foi novamente resgatada nos álbuns Shapeshifter (1992) e Zero to Infinity (2000), mas sem a surpresa dos primeiros registos.
Hoje a música é mais cirúrgica, alguma move-se com calculismo. Os Gong deste período são igualmente uma cirurgia, mas de coração aberto e sem anestesia. E há quem acredite que o Planeta Gong se tornará visível em 2032... Aqui estão outras pérolas deste universo tão mítico quanto louco.